Em comemoração à Década Internacional de Afrodescendentes, documentário
produzido pelo Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio)
aborda as causas da intolerância religiosa e a riqueza da cultura
afrodescendente no país.
s religiões de matrizes africanas são parte da diversidade religiosa
do Brasil. Entre algumas dessas manifestações, que têm como referência a
cultura trazida pelos africanos durante mais de 300 anos de escravidão,
estão catimbó, cabula e principalmente umbanda e candomblé, que se
propagaram com mais intensidade pelo Brasil.
Desde sua chegada ao Brasil, os praticantes de religiões de matrizes
africanas foram alvo de perseguições por manifestarem a sua fé. Mas
ainda hoje, em 2015, os episódios de intolerância religiosa fazem parte
do cotidiano. No contexto da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), a ONU destaca essas manifestações brasileiras e de forte ligação com a África.
“Eu costumo dizer que a África e o Brasil se casaram e tiveram dois
filhos: candomblé e umbanda. O candomblé é uma religião de matriz
africana, a sua origem está na África, sobretudo no sudoeste da África. É
uma religião brasileira e que se constituiu não só com essa matriz, mas
com o sincretismo a partir da relação com o cristianismo, com cultos e
vivências indígenas. A umbanda tem outra forma de sincretizar além dessa
construção africanista porque promove outras relações com o misticismo,
valores ciganos, kardecistas e hinduístas”, explicou, em entrevista
exclusiva ao Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio), o
babalorixá Márcio de Jagun, ressaltando que, para os detratores, tanto
os candomblecistas quanto os umbandistas são chamados de “macumbeiros”.
Apesar da influência africana desde o século XVI, o candomblé e a
umbanda se consolidaram na sociedade brasileira nos últimos 200 anos,
principalmente no início do século XX, quando o público pôde ter
conhecimento das práticas a partir, por exemplo, das pesquisas de Pierre
Verger, etnólogo francês e babalawo, que dedicou a maior parte de sua
vida ao estudo da diáspora africana e ao comércio de escravos.
Essas práticas religiosas de matrizes africanas também fazem
referência à comida, à música, aos tecidos e aos costumes não apenas dos
escravos, mas dos colonizadores. Como exemplo deste sincretismo estão a
indumentária e as louças que foram acrescentadas ao culto, como
referência aos costumes portugueses.
“Após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, vimos um
movimento eugenista crescer no Brasil. A ideia era embranquecer o país,
dar identidade europeia. Então, toda essa cultura afro foi
criminalizada: o samba, a capoeira, a prática religiosa… Tudo era
estigmatizado”, destaca, em entrevista ao UNIC Rio, o babalawo Ivanir
dos Santos, acrescentando que a África está muito presente no seio da
história e da construção da religiosidade, mas isso não recebe a
importância que deveria.
Desafios para mensurar os praticantes
De acordo com o último censo, de 2010, menos de 1% da população
brasileira pratica as religiões de matrizes africanas. Mas esse universo
não condiz com a realidade, já que ele não expressa a quantidade de
pessoas que, juntamente com outras religiões, frequentam os cultos de
matriz afro. O documento do IBGE informa que há cerca de 407 mil
praticantes da umbanda, 167 mil do candomblé e cerca de 14 mil de outras
religiões de matrizes africanas.
“O ultimo censo mostrou a diversificação do campo religioso. O
catolicismo, religião hegemônica, vem decrescendo, o que vem abrindo
espaço para o crescimento dos neo-pentecostais. Já os afro-religiosos,
representam menos de 1%. O que vários especialistas têm dito, e eu
concordo, é que esse número está subestimado. Há que se fazer uma
pesquisa mais cuidadosa de maneira a saber como isso pode ser perguntado
para chegarmos mais perto da religiosidade brasileira. Antigamente,
sabemos que em muitos terreiros, vários cultos eram realizados na igreja
católica. Desta forma, deveria ser aceitável na declaração que a pessoa
se identificasse com mais de uma religião”, diz a antropóloga Sonia
Giacomini.
Ciente da demanda para estudar e divulgar o trabalho desenvolvido nas
casas, uma pesquisa coordenada por Giacomin e desenvolvida pelo Núcleo
Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente da PUC-Rio mapeou
847 terreiros do Rio de Janeiro. O resultado foi divulgado no livro
“Presença do Axé: Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”, que revelou
também o mapa da intolerância religiosa.
“Grande parte das perguntas do estudo, que também foi desenvolvido
pela pesquisadora Denise Pini, era sobre o funcionamento da casa. Além
dessas questões, o conselho religioso resolveu que teria que ter uma
outra bem importante: se a casa tinha sofrido algum episódio de
discriminação. Como as respostas foram muito minuciosas, pudemos
identificar quem eram os agressores, quem eram as vítimas e, desta
forma, um mapa da intolerância.”
Acirramento da Intolerância Religiosa
Em junho, uma menina de 11 anos, praticante do candomblé, levou uma
pedrada na cabeça, após saída do culto na Vila da Penha, Rio de Janeiro.
A família registrou a ocorrência como lesão corporal e prática de
discriminação religiosa.
Márcio, que é membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
do Rio de Janeiro (CCIR-RJ), diz que não é concebível que alguns
religiosos incitem a violência e que seus superiores sejam alheios a
essa discussão. Eles precisam ser responsabilizados. O parágrafo VI do
artigo 5º da Constituição brasileira diz que é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
a suas liturgias. A Lei Caó (Lei 7.716/89) considera crime a
intolerância religiosa.
De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, foram
registradas 39 queixas pelo Disque 100 apenas em 2013, o que deu ao
estado do Rio o título de maior detentor das denúncias em todo o Brasil,
mas o registro ainda é muito precário.
Márcio conta que a Secretária Nacional de Direitos Humanos
contabilizou, até hoje, 500 casos de intolerância religiosa em toda a
sua história. Esse número não condiz com o cenário atual,
principalmente, porque muitos dos casos que deveriam ser registrados
como intolerância religiosa são catalogados como briga de vizinho,
injúria ou calúnia.
A intolerância religiosa está na história do Brasil desde a chegada
dos portugueses, já que, nas primeiras missões, havia a clara intenção
de converter os índios e os escravos ao catolicismo. Ao longo dos
séculos, essa ideia parece ter sido perpetuada.
“As igrejas neo-pentecostais têm disputado espaço com os barracões,
têm desejado ocupar o nosso espaço. Muitas vezes, elas se preocupam em
comprar os nossos terreiros e, nos mesmos espaços, abrir os templos”,
afirma Márcio, que também é presidente da Associação Nacional de Mídia
Afro.
As igrejas neo-pentecostais congregam denominações oriundas do
pentecostalismo clássico ou mesmo das igrejas cristãs tradicionais (como
as batistas e metodistas). Elas surgiram aproximadamente 60 anos após o
movimento pentecostal do início do século XX, em 1906.
Para Ivanir, existe uma disputa de mercado pelos fiéis, que cria uma
demonização para que os praticantes de religiões afro se sintam
envergonhados, o que se apresenta como um risco para a sociedade, não só
para liberdade religiosa, mas para liberdade politica.
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