sábado, 11 de maio de 2013

Vestibular em xeque (Revista de História)


É hora de se discutir o ciclo vicioso que faz as escolas massificarem o ensino de História de olho nas vagas em universidades

Thais Nivia de Lima e Fonseca

Grandes personagens da nossa história, o passado estático numa vitrine ou a vontade de líderes decidindo as mudanças. Essas idéias já não entusiasmam as aulas dos professores de história. A reformulação do ensino desta disciplina começou com a elaboração dos “Parâmetros Curriculares Nacionais” no final do regime militar, entre 1979 e 1986. Nas “Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais no Ensino Médio” encontramos aspectos claramente inspirados nas tendências atuais da historiografia: a ideia de que o passado não se encerra em si mesmo, mas deve ser visto como um processo; a história vista como resultado da ação de grupos e de indivíduos diversos, e não somente dos “grandes personagens”; a importância de ressaltar as ações dos sujeitos nos diferentes tempos e espaços, e o estudo da história à luz de concepções mais abrangentes da cultura.
Com o objetivo de orientar o ensino da História segundo esses fundamentos, os PCNs indicam competências e habilidades que devem ser desenvolvidas pelo aluno, entre elas: “criticar, analisar e interpretar fontes documentais de natureza diversa”; “produzir textos analíticos e interpretativos sobre os processos históricos”; “relativizar as diversas concepções de tempo e as diversas formas de periodização do tempo cronológico”; “construir a identidade pessoal e social na dimensão histórica, a partir do reconhecimento do papel do indivíduo nos processos históricos, simultaneamente, como sujeito e como produto dos mesmos”; “comparar problemáticas atuais e de outros momentos históricos”.
A adoção de tais critérios, no entanto, está hoje muito mais presente no ensino fundamental que no ensino médio, e o mesmo pode ser dito das experiências feitas em sala de aula. O motivo geralmente apontado para explicar tal situação é o fato de o ensino médio estar muito ligado à preparação dos alunos para os concursos vestibulares. São os programas das provas, definidos pelas universidades e faculdades, que no final das contas acabam orientando o comportamento dos professores.
Na indicação dos conteúdos a serem cobrados aos vestibulandos, permanecem os temas tradicionais, numa organização cronológica tradicional, o que os afasta, ao menos quanto à formulação, das inovações pretendidas para o ensino médio. Se fizermos o confronto desses programas com as questões elaboradas para as provas, veremos que vão prevalecer as orientações gerais já legitimadas há muito tempo no ensino de História, mesmo quando se busca fugir das abordagens tradicionais ou anacrônicas. Professores experientes têm procurado criar estratégias que os permitam contornar a situação, ou seja, conciliar a demanda preparatória e o compromisso com o ensino da História. Vejamos alguns exemplos de questões apresentadas nos vestibulares de 2006 em diferentes regiões metropolitanas do Brasil:
“A Revolução Francesa de 1789 foi um fenômeno que pode ser comparado àquele da Revolução Americana de 1776. Ambas constituem parte do que designamos como “Revoluções Burguesas”. Entretanto, observando seus resultados políticos na França e nos EUA, percebemos diferenças radicais no tocante aos modos de organização dos governos de cada um desses Estados. Tendo em vista o estabelecido:
a) explique as diferenças entre as formas políticas resultantes de cada uma das revoluções, no âmbito da França e dos EUA;
b) indique um dos líderes da Revolução Americana e um movimento no Brasil que tenha recebido a influência de uma das ‘Revoluções Burguesas’. (UFF, 2006)

Outra questão:
Felipe II, rei da Espanha, entre 1556 e 1598, não conseguiu impedir a revolta dos holandeses (Países Baixos setentrionais). Luis XIV, rei de França, entre 1643 e 1715, não conseguiu conquistar a Holanda. Nos dois enfrentamentos, estiveram em jogo concepções político-religiosas opostas e estruturas sócio-econômicas distintas. Explique:
a) essas concepções político-religiosas opostas
b) essas estruturas sócio-econômicas distintas.” (FUVEST, 2006)

Essas questões exigem que o aluno, em geral recém-egresso do ensino médio, estabeleça relações entre o geral e o particular, que faça análises comparativas, além de um conhecimento histórico específico, que envolve os episódios, os sujeitos e os períodos em que ocorreram. Embora em alguns pontos essas exigências coincidam com as diretrizes dos PCNEM, essas questões são de certa forma convencionais, e representando as orientações constantes nos programas dos concursos vestibulares, induzem os procedimentos dos professores do ensino médio em seu trabalho na sala de aula. Não há dúvidas de que eles percebem claramente esse direcionamento imposto pelo vestibular. E isso provoca certo desconforto e estimula a “decoreba”, como se vê pelo relato de um professor experiente de Belo Horizonte, Eliezer Raimundo de Souza:
“O que importa no ensino médio, de forma mais ou menos generalizada, é a preparação para o vestibular. No terceiro ano isso virou uma ‘doença’, visto que a perspectiva formativa que ainda deveria estar em curso, se encerra, e se inicia a preparatória. Nessa fase, tanto os alunos quanto a escola exigem quantidade e velocidade: todo o conteúdo deve se visto até aproximadamente o mês de outubro, quando então se inicia uma bateria de exercícios de revisão, novamente, de todo o conteúdo. É lógico que isso se faz em prejuízo de novas abordagens do conteúdo. Em História, o que se verifica é que qualquer trabalho que estimule o aluno a elaborar uma interpretação com autonomia, a partir do próprio esforço, não é aceito pelo coletivo escolar, pois sugere morosidade.”
A professora Carla Simone Chamon, do CEFET-MG, chama a atenção para a pressão que sofrem os professores que atuam em cursos preparatórios para o vestibular. Esta não parte apenas dos alunos e suas famílias, mas das próprias equipes escolares e do Estado:
“O problema é que, com um programa cada vez maior, no tempo e nas temáticas, é uma loucura trabalhar ‘tudo’ com os alunos e ainda refletir criticamente com eles. As vezes eu acho que muitas escolas e cursinhos passam por cima do aluno como um rolo compressor com esse negócio de preparar para o vestibular. Na minha prática, procuro sair dessa tirania, e isso significa fazer uma  escolha do que ensinar. Esta precisa ser sempre refeita uma vez que, volto a dizer, a História tem incorporado novos objetos. Veja por exemplo a questão da história da África. É uma temática importante, mas também não dá pra ficar só acrescentando temáticas.”
A discussão sobre o ensino de História e seus fundamentos teóricos no Brasil já vem ocorrendo intensamente há 20 anos. No ensino fundamental os resultados são visíveis, no sentido de uma inovação mais efetiva nos seus pressupostos e na sua prática. Mas no ensino médio os entraves à inovação são ainda fortes e parece haver poucas dúvidas de que sua relação com o vestibular é o elemento central da discussão sobre os avanços a serem promovidos. Fica aqui, então, o convite para um debate sobre tão importante tema entre os professores e os pesquisadores do ensino de História.
Thais Nivia de Lima e Fonseca é professora de História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de História & Ensino de História (Autêntica,2003).
Saiba mais - Bibliografia:
ABREU, Martha & SOIHET, Rachel (orgs). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

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